Um dos motivos pelos quais sou 100% impermeável ao apelo dos quadrinhos e filmes de super-herói é que a obsessão norte-americana com a justiça não faz qualquer sentido para um sujeito nas minhas latitudes. As narrativas de super-herói são ensaios e variações na sondagem dos extremos da aplicação da justiça, e o sertanejo/letão/italiano dentro de mim não consegue conceber exercício mais almofadinha e mais maçante.
Os uniformes e narrativas de origem mudam, mas o arcabouço é o mesmo: o super-herói é compelido a agir porque tem despertado o seu senso de justiça, e este é despertado quando ele entende que a justiça tradicional
Para combater esse Brasil veneno que se descortina na perda das delicadezas do mundo, só mesmo esse Brasil remédio de Villa e Elizeth, minha terra dos presépios mais precários, das bandinhas de pastoris e lapinhas do Nordeste, dos enfeites das moças dos cordões azul e encarnado, e das folias que homenageiam – entre cachaças, cafés e bolos de fubá, gentilmente servidos pelos donos da casa – os Reis do Oriente. Meu Brasil de aboios, louvores, comidas, leilões de prendas, namoros, cheiros e bordados; terra de afetos celebrados que permitem a subversão – pelo rito – da miudeza provisória da vida. Meu Brasil de pajelanças
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Dani é um cara com uma barba selvagem e um cabelo de leão. É um erudito, uma usina de força e um santo que viveu a maior parte da vida na companhia sem glamour de gente brutalizada que o mundo esqueceu: drogados, prostitutas, sem-teto, travestis, meninos de rua. Dani era um dos meu heróis pessoais por cada uma dessas razões, mas Dani quebrou e não pode ser mais usado como herói – pelo menos não do modo que eu costumava usá-lo antes.
Quando escreve sobre o que aconteceu, e o faz raramente (Dani escreve hoje muito menos do que fazia), ele explica que, essencialmente, exauriu e morreu. Morreu e foi comido pela escuridão até a escuridão
Adam Phillips
Lacan disse que havia por certo algo de irônico na de prescrição de Jesus de amarmos o próximo como a nós mesmos – porque na realidade, evidentemente, as pessoas odeiam a si mesmas. Ou poder-se-ia dizer que, dado o modo como se tratam mutuamente, as pessoas têm desde sempre amado o próximo como a si mesmas: com uma boa dose de desprezo e crueldade. “Afinal de contas”, escreve Lacan, “os seguidores de Jesus não foram gente muito brilhante”.
Aqui Lacan está de modo implícito comparando Jesus a Freud, cujos seguidores na opinião de Lacan traíram em grande parte a visão de Freud lendo-o da maneira
A história do cristianismo é também a história da dança pública de um número limitado de palavras. É a história de para onde essa inusitada coreografia acabou conduzindo tanto as palavras que estavam dançando quanto as pessoas que estavam ouvindo.
Não é de estranhar que Jesus de Nazaré tenha se recusado a reduzir a virtude a um conjunto confortável de regras; não é de estranhar que ele tenha se negado firmemente a indicar que a conduta do reino pudesse ser domada em normas ou esgotada pela obediência passiva. Essas suas cautelas se enquadram de modo natural em seu projeto de rejeitar o uso de qualquer ferramenta de manipulação e de poder. Legislar é poder, legislar é condicionar, e nada está mais distante da postura que Jesus assumiu para si mesmo e sonhou para os seus amigos.
Também não é de estranhar que a igreja tenha ignorado por completo esse sonho de Jesus, tendo
A primeira coisa é você não enganar a si mesmo; e ninguém você engana com mais facilidade do que a si mesmo.
Richard Feynman
Não entendemos a realidade diretamente, mas intermediada por discursos, preconcepções e filtros – óculos ideológicos que determinadas disciplinas chamam de modelos. Modelos conceituais explicam para nós a realidade mesmo quando não pensamos neles; na verdade, sua eficácia está ligada ao fato de que determinados modelos nos parecem tão naturais que não requerem reflexão. Cremos que estamos olhando o mundo diretamente, e esquecemos que estamos usando os óculos de determinada ideologia.
Daniel Oudshoorn
Certa vez, quando comia com os fariseus e publicanos, um dos anciãos sentado no lugar de honra à direita do anfitrião começou a perguntar a Jesus sobre as frases atribuídas a ele.
– Rabi – disse o ancião, – você nos disse para amar o próximo e nos disse quem é o nosso próximo. Ouvi dizer que você também disse para amarmos os nossos inimigos e orar pelos que nos perseguem, mas você não foi tão claro a respeito de quem são os nossos inimigos. Diga-me, rabi, quem é o meu inimigo, para que eu o ame? Quem é aquele que me persegue, para que eu ore por ele?
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La storia, Francesco De Gregori | Clique no triângulo para ouvir
A história somos nós, ninguém sinta-se prejudicado
Somos nós este campo de agulhas sob o céu
A história somos nós, atenção, ninguém sinta-se excluído
A história somos nós, somos nós estas ondas no mar,
Este rumor que rompe o silêncio,
Este silêncio tão difícil de relatar