O que é vender alguma coisa “na bacia das almas?” O que o noticiário quer dizer com “a seleção se classificou na bacia das almas?”
Para o Houaiss, a expressão quer dizer simplesmente “a custo extremamente baixo”, o que cobre o primeiro sentido acima mas não o segundo. O Aulete assinala o sentido de “situação dramática, desesperadora, crítica”, e nisso parece mais próximo do uso popular. Porém ambos são superados pela definição do Plínio em sua contribuição (de resto anônima) no Dicionário Informal:
Último momento, última oportunidade oferecida como piedade, quando outras oportunidades foram deixadas ou esquecidas anteriormente.
Essa definição tem a dupla vantagem de cobrir todos os usos, e de remeter ainda à origem da expressão. Porque, em seu sentido original, a bacia das almas era o recurso final dos que não tinham quaisquer outros recursos.
Nas igrejas francesas do período medieval tardio, “bacias das almas” eram irmandades criadas para angariar fundos que financiassem missas em favor das almas do purgatório.
Na tradição católica as almas do purgatório estavam em situação particularmente desfavorável. Estavam na antecâmara do Paraíso mas sofriam punições idênticas às do Inferno, e da sua posição entre os dois não tinham mais como oferecer ofertas, jejuns e penitências de modo a expiar os seus próprios pecados. Para diminuir a extensão da sua pena tinham de depender da boa vontade dos vivos.
Isto é o que diz A aplicação dos méritos em As divinas gerações:
Este é um componente fundamental da noção católica de purgatório: a ideia de que os méritos dos cristãos vivos podem ser aplicados na compensação dos pecados não ressarcidos dos cristãos mortos, de modo a acelerar a sua entrada no Paraíso. Isso se faz oferecendo-se missas, ofertas e orações — não aos mortos, mas em favor deles.
Essa aplicação dos méritos é a transação que faz a fila do purgatório andar. Se não contarem com a intervenção indenizadora dos vivos, as almas do purgatório terão de purgar suas dívidas através de seus próprios sofrimentos, processo que é tão dolorido quanto demorado. Nessas horas vale mais ter um amigo na terra do que um no céu.
No ressarcimento dos débitos do purgatório, não havia moeda mais forte do que o sacrifício da missa. As famílias ricas ofereciam diversas missas em favor dos seus mortos, mas missas eram um negócio caro. Os pobres ofereciam em favor dos seus mortos orações e outras penitências, mas no que dizia respeito ao enorme potencial de ressarcimento das missas estavam descobertos.
Na Europa do século XIV, quando a ideia de purgatório alcançava popularidade sem precedentes e o sentimento popular em favor das “almas santas e aflitas” do purgatório era fortíssimo, muitos movimentos religiosos se organizaram para aliviar os apuros desses desfavorecidos.
A igreja [de Saint Martin] mantinha também um bom número de “bacias” para a arrecadação de ofertas, que eram dedicadas a entidades espirituais (Bacia das almas do purgatório, Bacia de Notre Dame) ou a causas sociais (Bacia do l’Hôpital des Pauvres, Bacia de l’Ouvre) 1Gallargues Le Montueux, L’Eglise Saint Martin..
Nas igrejas francesas a bacia das almas do purgatório era tanto um recipiente de coleta (um prato ou bacia em que as ofertas eram recolhidas) quanto um fundo coletivo de doações:
Em 1530, Jean Tabaux, padre, e Pierre, seu irmão, fundaram uma pensão anual em favor da bacia das almas do purgatório da igreja de Valence, e doaram, para esse fim, uma vinha na jurisdição de Valence, conhecida como Quinze Ventos, defronte a vinha de Jean de Boyer, etc.
[…] Em 1527, Sans e Pierre de Boyer, irmãos, doaram à bacia das almas do purgatório da igreja de Valence a casa, campos, vinhedos e florestas conhecidos como Bazin 2Revue de Gascogne, Volume 11..
Em seu estudo Les prêtres du purgatoire (XIVe et XVe siècles) a medievalista Michelle Fournié recapitula as características da instituição:
A bacia das almas do purgatório da catedral Saint-Alain de Lavaur é, como as outras associações da mesma espécie, uma espécie de confraria sem confrades, um organismo piedoso administrado por quatro representantes leigos eleitos por um ano. Seus nomes aparecem anualmente no cabeçalho das suas prestações de contas, e assumem seus cargos no Natal.
Esses representantes fazem circular durante as missas um prato de ofertas ou bacia/bassin, na qual recolhem as ofertas dos fiéis. Eles administram além disso as propriedades “do purgatório”, vendem ou adquirem bens imobiliários e anuidades, recebem o censo das vassalagens, o aluguel dos arrendatários, as doações testamentárias e por vezes a herança integral de doadores generosos.
A bacia das almas do purgatório tem uma vocação particular: a celebração de missas pelas almas do purgatório, celebração que se apoia sobre um calendário litúrgico original.
A prática e a instituição da bacia das almas foi também adotada em Portugal – onde, segundo a Dra. Adalgisa Arantes Campos (UFMG), “a devoção às almas do purgatório contou com uma vitalidade ímpar”, – e dali é que chegou ao Brasil.
As Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia, que regulamentam na Colônia as decisões do Concílio de Trento, recomendam:
“(…) encomendamos muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de servirem, e venerarem nellas aos Santos, principalmente á do Santíssimo, e do nome de Jesus, á de N. Senhora, e das Almas do Purgatório, porque estas Confrarias he bem as haja em todas as Igrejas.”
No Brasil, como em Portugal, as bacias das almas estavam associadas à devoção a São Miguel, arcanjo tido como protetor das almas do purgatório. Esta é ainda Adalgisa Arantes Campos, falando sobre a veneração às almas na Minas Gerais do século XVIII:
A evangelização ocorre às custas dos próprios leigos que, assentando-se socialmente, erigem as irmandades, responsáveis pelo culto e pela edificação dos templos mineiros. […] Naquela rude sociedade teve grande pujança a sociabilidade confrarial, voltada para as obras de misericórdia entre os próprios irmãos. Trata-se da caridade entre os pares. Apenas as irmandades de São Miguel e Almas reservavam parte das esmolas recebidas – as bacias das almas – para a celebração de missas para as almas do Purgatório.
A prática e a irmandade encontraram modo de perpetuar-se pelos séculos. Em Esaú e Jacó, escrito em 1904 mas falando de um Brasil de alguns anos antes, Machado de Assis apresenta um “irmão das almas”, figura que percorre o Rio de Janeiro com uma bacia de ofertas, trajando uma opa (túnica usada por membros das irmandades religiosas) e pedindo esmolas em favor dos mortos:
Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da Rua da Misericórdia para a de S. José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cansaço. Natividade estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir: “Para a missa das almas!” tirou da bolsa uma nota de dous mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatório.
A parte mais interessante dessa história é também aquela que seria mais imprudente tentar retraçar: de que modo a prática de caridade tornou-se expressão popular – mas o próprio cenário sugere associações a que é difícil resistir.
O aspecto mais tocante a respeito da condição das almas do purgatório, constantemente explorado na literatura religiosa a respeito do assunto, era a sua falta de autonomia. Tratava-se de gente boa que estava sofrendo sem poder fazer coisa alguma para melhorar a sua condição, e essa falta de agência despertava a pena que era o gatilho das doações.
Porém ninguém ignorava que as almas sofriam no purgatório porque haviam deixado de usar sua autonomia quando estavam entre os vivos. Se em vida tivessem oferecido orações, ofertas e outras santas abstenções, poderiam ter evitado o purgatório por completo ou reduzido consideravelmente a sua pena.
Esse era na verdade um grande incentivo psicológico em favor da doação de fundos para a causa da bacia das almas: os que doavam estavam usando a sua agência, e cada oferta era creditada como mérito em favor do doador. Cada doação representava menos culpas a serem expiadas numa eventual passagem futura pelo purgatório, ou uma chance a mais de evitá-la. Deitar ofertas frequentes na bacia das almas era também evitar ter de um dia lançar mão desse derradeiro auxílio.
A bacia das almas era o recurso dos que não tinham outro recurso, mas precisamente porque tinham deixado passar oportunidades melhores. A mesma lógica se aplica a alguém que vende uma propriedade ou a um time que se classifica “na bacia das almas”: trata-se de recorrer a uma solução dramática e longe do ideal, ao último recurso, porque as oportunidades ótimas ficaram para trás.
Uma história de origem não precisa ser factual para ser interessante, e ninguém sabe disso mais do que a internet. Quem precisa ter acesso às fontes quando a imaginação está sempre à mão?
Seguem uma ou outra histórias interessantes que a internet conta sobre a origem da expressão. O que importa que não sejam factuais, quando estamos falando de alguma coisa “na bacia das almas”?
► Baccinum animæ
Do latim baccinum animæ. As almas, sendo imateriais, incorpóreas e incolores, não ocupam lugar. Elas nunca estão, elas são. Já o baccinum era, naqueles tempos em que o latim era obrigatório porque os bárbaros ainda não haviam inventado o inglês, um lugar no qual eram depositados os objetos/as coisas a serem guardados. Havia um baccinum para cada finalidade, obedecendo a formas, tamanhos e, sempre que possível, cores diferentes, a fim de que um baccinum destinado ao coccinare não viesse a ser usado, antes, como urinol. E vice-versa (convenhamos, mais versa que vice).
Ora, dizer “leve esse objeto à bacia das almas”, como é fácil perceber, significava “vá pentear macacos” ou “vá ver se eu estou na esquina”.
Essa explicação (que encontrei aqui) esteve por anos arquivada neste sáite, não porque acreditássemos nela, mas pela sua malemolência muito satisfatória, sua vontade de convencer e de zombar ao mesmo tempo.
Na verdade, e se viesse ao caso, em latim “bacia” se diria “bassinum”, não “baccinum”.
Curiosamente, outro modo de se dizer “bacia das almas” em latim é pelvim animæ 3Pélvis e bacia são sinônimos também no corpo humano, veja a coerência da coisa toda. . A expressão foi realmente usada por autores cristãos que escreviam em latim – não no sentido atual ou para referir-se às almas do purgatório, mas como evocação poética. Exemplo: “derramar a água das Escrituras na bacia da alma/mittunt aquam de Scripturis in pelvim animae” 4São Jerônimo. ou “água colocada na bacia das nossas almas/aqua quam mittamos in pelvim anima nostra” 5Santo Ambrósio.. Outras ocorrências aqui.
Ainda mais curioso é que parece ter sido nesse sentido poético que Luiz Antonio de Assis Brasil usou a expressão que dá nome a seu romance Bacia das Almas (1981):
– A noite do Sabá, anão, é aquela de que todos devemos participar, uma vez na vida; é a noite em que nos apercebemos de que existimos e nos tornamos conhecedores da verdade. É a noite da confissão, desmanchamento, queda do paraíso. Horrível noite, da qual acordamos novos, ressuscitados e limpos, lavados na bacia das almas.
► A bacia da Extrema Unção
A expressão provém dos preparativos para o sacramento da Extrema Unção, quando a bacia em que se colocavam os óleos, unguentos e paramentos do sacerdote ficavam ao lado do moribundo.
Essa história de origem comparece também ela no Dicionário Informal. Não tem qualquer fundamento, mas é repetida em outros lugares da net sem muita reflexão (por exemplo aqui e aqui), como é o costume.
E você, caro e impenitente leitor, tem na memória ou na imaginação outra história de origem ou de uso para a expressão “na bacia das almas”? O mundo tem de saber, enquanto há oportunidade.
Escrevo livros, faço desenhos e desenho letras. A Bacia das Almas é repositório final de ideias condenadas à reformulação eterna.
Notas
1. | ↑ | Gallargues Le Montueux, L’Eglise Saint Martin. |
2. | ↑ | Revue de Gascogne, Volume 11. |
3. | ↑ | Pélvis e bacia são sinônimos também no corpo humano, veja a coerência da coisa toda. |
4. | ↑ | São Jerônimo. |
5. | ↑ | Santo Ambrósio. |