A Bacia das Almas não tem imagens de gatinhos, fora uma ou outra
Foi precisamente essa perda de contato com o passado, nosso desenraizamento, que deu origem aos “descontentamentos” da civilização, a uma pressa e uma agitação tão grandes que vivemos mais no futuro com suas quiméricas promessas do que no presente, cujo passo acelerado nosso pano de fundo evolucionário não aprendeu ainda acompanhar. Precipitamo-nos impetuosamente novidade adentro, guiados por um senso cada vez mais acentuado de insuficiência, de insatisfação e de inquietação. Não vivemos mais daquilo que temos, vivemos de promessas; deixamos de viver à
Podemos supor que, do mesmo modo que o inconsciente nos afeta, um acréscimo no consciente afeta o nosso inconsciente.
Carl Jung em Memories, Dreams, Reflections
A chuva era universal, ocupando o espaço da cidade sem pausa e sem trégua havia dois ou três dias, como se o dilúvio fosse o estado natural das coisas.
O livro que ele pousou em cima da mesa, entre o cinzeiro e a garrafa de Chianti, eu já conhecia, o último dele, publicado quatro anos antes. O desenho da capa mostrava uma cena clássica de abdução: um homem num descampado surpreendido pelo círculo de um facho de luz que descia de um disco voador vários metros acima dele.
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Luis Antonio Simas
É aí que localizo na minha cidade o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global – o botequim. O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da porrada, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da alegria do novo amor, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar.
A luta pelo buteco é a possibilidade de manter viva uma Ágora efetivamente popular, espaço de geração de ideias e utopias – sem viadagens intelectuais, mas fundadas na sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar
Milhões de auroras, milhões de entardeceres, milhões de noites e de tardes que acabaram descolorando a fachada, escovando os muros e rebocando tudo com a massa do tempo: aquela pátina velha, preciosa e inimitável que é como o brasão nobiliárquico das edificações antigas e que recuso-me a destruir com uma reforma.
Adriana Zarri, falando de sua velha casa, em Un eremo non è un guscio di lumaca
Meu nome é Paulo Brabo, e sou um viajante do tempo. O presente não é o meu mundo – e isso, olha, desde a mítica Idade Offline que precedeu a internet, quando metade de vocês não tinha nascido. Hoje é um lugar que não existe.
Não
Outro resultado desse novo arbítrio foi a geral catadura e revisão da genealogia de gente blasonada dos sete ventos dos antanhos.
De Carnivaldo a menos controversa é também a mais extensa e mais recente, aquela que aparece nas Crônicas e falaços de Fabrizio Forro. Não se requer maior cotejadura: a versão aberta diante do leitor não só assume a genealogia de Forro como rigoroso meridiano, como a ignora por completo. Em manobra que aprovaria sem pestanejo Carnivaldo, rendemos preferência ao tradicional em detrimento do comprovado, ao pitoresco em detrimento do que é mesquinhamente acurado. Não deixou de apontar Regente Boffé
Foto Magru Floriano
Estava sujo de lama quando o vi. Os olhos cheios de lágrimas que escorriam revelando finas linhas de pele escura sob o lodo malcheiroso da enchente. Chorava entre as casas destruídas, entre os destroços, entre o desespero. Vi o amor escorrendo como lágrima em dor e angústia e o desejo de abraçar a todos.
Vi-o também caminhando convicto carregando móveis, roupas e eletrodomésticos completamente destruídos, escorrendo suor, juntando entulhos, limpando bueiros.
Encontrei-o fardado, em tanques e caminhões, carregando macas. Vislumbrei-o de longe, chorando e assustado em casas inacessíveis.
Vi-o passando fome,
Circulou há algumas semanas uma entrevista em que o sociólogo Roberto Dutra analisa o impacto político do crescimento da população evangélica no Brasil. Seu alerta mais ressonante é o de que haveria “uma cegueira da esquerda em compreender essa nova classe trabalhadora”:
O PT é informado por uma visão de esquerda de que os pobres devem seguir um modelo de ser e agir que vem dos moldes dos sindicatos. Os pobres devem ser coletivistas. Os pobres devem se enquadrar em um viés de solidarismo antiindividualista. Toda vez que o PT encontra a valorização do indivíduo, a valorização da autonomia do indivíduo frente às intempéries
É fato universalmente conhecido que sei gastar o seu dinheiro melhor do que você, mas é desde 2013, quando tudo ia bem, que não lhe dizemos aqui na Bacia o que você deve desejar comprar. Nada mais oportuno do que lançar em plena crise esta nova linha de produto: quem não iria querer pagar hoje mesmo para ter uma ilustração minha feita a partir de uma foto sua? Você pode não ter como pagar, mas pode imediatamente passar a querer.
A manipulação deliberada e inteligente dos hábitos e opiniões organizados das massas é elemento fundamental de uma sociedade democrática. Os que manipulam esse mecanismo oculto da sociedade constituem um governo invisível que representa o verdadeiro poder dirigente do nosso país.
Somos governados, nossas mentes são moldadas, nossas preferências formadas, nossas ideias sugeridas em grande parte por homens dos quais nunca ouvimos falar.
[. . .] Em praticamente tudo que fazemos na vida diária, seja na esfera política ou nos negócios, seja em nossa conduta social ou convicção ética, somos dominados por um número relativamente pequeno
Não tenho televisão há mais de dez anos, e um dos efeitos colaterais dessa condição é o sobressalto. Seja onde for, encontrar um aparelho de tv ligado não tem como gerar em mim estranheza menor do que produziria encontrar naquele mesmo canto uma ariranha, um grifo ou um zumbi acorrentado. Que os outros no aposento ignorem por completo a ameaça só contribui para acentuar o senso de afastamento da realidade da coisa toda.
A ressalva é que, sendo gente, não ignoro o fascínio quase doméstico de ariranhas, grifos e zumbis.
Porém existe um horror cósmico que nada tem de doméstico: um horror de indiferenças ciclópicas, um estranhamento
Em dias de ojejorno não há quem ignore que as genealogias nos tornam pessoa melhor na medida em que menos claramente nos antecipam a grandeza. Carnivaldo de Bezerros, tendo vivido e atuado em tempos menos ilustres e menos conexos, não teve como se beneficiar desse conhecimento, embora tenha angariado o mérito de se mostrar gente nobre e admirável sem ter chegado a saber se o sangue lhe endossava a virtude ou a puxava para baixo.
Foi Cravalo de Orvaglio, poeta da versejadura do iluminismo e partidário da água de cevada, o único autor do famoso De Merito Metricio, tratado em cinco livros em que está escrito que num mundo justo
A Bacia das Almas já foi refutada mais de uma vez por teólogos abalizados